A nossa cultura é a nossa força de amanhã, aos filhos de hoje e futuras gerações!

Por: Braulina Baniwa
Memorizar as coisas vividas no dia da morte são carregadas de emoções fortes e tristes, por isso elas marcam nossas vidas fixando em nós e nos levando a revivê-las com as saudades. Em nosso lamento profundo de perdas, nós nos perguntamos: por que tão cedo? E aos mesmo tempo pensamos nos sonhos que foram possíveis até essa data.
Quem vos escreve estas memórias é uma indígena mulher, pesquisadora e antropóloga do tronco linguístico Aruak. O território tradicional do meu povo fica no rio Içana, mas estamos espalhados em todo o rio Negro, nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos e Manaus. Uma parte do nosso povo está na Colômbia e Venezuela. Para falar de memória, precisamos relembrar o triste processo histórico de contato do povo Baniwa (conhecidos assim pelos não indígenas), porém nos autodenominamos Medzeniakonai[1].
Os Medzeniakonai (Baniwa) foram invadidos pelos não indígenas colonizadores no início do século 18, foram violentados, perseguidos e escravizados por espanhóis e portugueses. Uma boa parte dos indígenas morreram por epidemias no Brasil. As mais conhecidas que dizimaram muitos indígenas foram o sarampo e varíola, trazidas por nãos indígenas. Durante o processo do contato, os medzeniakonai (Baniwa) foram explorados por não indígenas, na ilusão de melhorar de vida através da troca de mercadorias pelo seu serviço braçal.
Acredita-se que os nossos avôs e as nossas avós enfrentaram as maiores violações de direitos humanos em defesa de nossos territórios milenares. A colonização mudou de cara com a chegada da religião na região do Rio Negro. A chegada de igrejas também foi de tamanha violência contra os direitos humanos, chamada na época de escola civilizatória e que hoje podemos compreender como a morte de conhecimentos ancestrais.
Passadas décadas de contato, nós nos organizamos, temos escolas, associações indígenas, acessamos espaços nunca ocupados por indígenas do nosso povo, somos o único povo do rio negro a chegar a ocupar lugares de destaque no governo, a nível nacional, estadual e municipal, como por exemplo, no MEC, Secretarias Estaduais e Prefeitura.
Alguns e muitos de nós decidiram ficar longe de sua família e comunidades para cumprirem suas funções de professor (a), agente de saúde, enfermeira (o), antropóloga (o), artista e escritor. Outros se ausentaram de suas famílias em prol da coletividade para coordenar as secretarias de destaque nos governos.
Memorizar essas vitórias é dizer o quanto conseguimos chegar a lugares nunca acessados pelos nossos avós ou nossos pais, temos lideranças de destaques que são pais e mães para muitos jovens que estão nas universidades espalhadas no Brasil.
Seguimos juntos em prol do nosso povo, estando em vários lugares. É sempre bom falar do nosso povo, seja para pessoas de outro povo, nas universidades, falar da pimenta – quem nunca ouviu falar da nossa pimenta, do ralo Baniwa, falar na língua Baniwa, antes de falar em português. Isso é muito rico, pois, nossos parentes perderam essa riqueza por conta do contato violento.
Mas também migramos, fazemos parte do povo que anda, somos livres de ir e vir, somos pessoas impacientes e aptas a organizar e coordenar qualquer frente que nos é dada para liderar, somos povo ágil e somos povo com inimigos do lado, pois somos povo amado e odiado ao mesmo tempo. Nossas tias, primas e avós tiveram e têm casamentos com diferentes povos e continuamos com essa prática nos dias de hoje, por isso estamos em quatro municípios do rio Negro e fora do Brasil.
A prática solidária com os próximos prevalece desde nosso surgimento até nos dias atuais. As comunidades do povo Medzeniakonai, espalhadas na margem do rio Içana e seus afluentes, continuam com as práticas coletivas de compartilhar, hábito cultural que herdamos de nossas avós.
Não importa se estamos no nosso território tradicional ou na margem do rio Negro, ou nas cidades, nós nos conhecemos, sabemos quem é quem, onde está e como está. Então esse sentimento de irmandade é sentido quando perdemos um ente querido, somos do tronco Aruak, nos dividimos em vários clãs, mantemos respeito de hierarquia entre nós, sabemos se são nossos irmãos, se são de alto, médio ou baixo Içana, não existe o melhor ou pior.
Se somos primos, somos primos, se é tia, é tia de todos, se é vô e vó é de todos, se é cunhado também é de todos, somos povos adaptáveis e alegres, rimos muito, tanto que o termo felicidade foi tema de pesquisa de Doutorado junto ao povo nas comunidades, nossos encontros, reuniões evangélicas são as mais alegres possíveis e compartilhamos o nosso alimento sagrado com os nossos visitantes, e partilhamos sempre.
Recebemos desde o nosso nascimento o sentimento de irmandade de família. Assim, choramos cada vida perdida, fazemos rede de apoio para superar as perdas, nossos anciões rezam e oram por cada família que ficam longe de suas casas. Esse amor fraternal e maternal que praticamos, mantém a espiritualidade do nosso povo e a crença de que existe um ser superior não acessível aos olhos humanos que nos protege em todos os espaços que estivermos.
Fomos o primeiro povo no rio Negro a perder um parente para essa nova doença (Covid-19). Sentimos e nos solidarizamos com a família, por ser uma pessoa que morreu cuidando dos outros, e denunciou a falta de equipamento para trabalhar com segurança. O trabalho desenvolvido por esse parente continuará na memória de seus filhos, amigos e parentes, vamos sempre lembrar da data que ele se foi, mas sem entender do por que tão cedo. Sabemos que ele voltará em outra vida, acreditamos que ele possa estar bem.
Mas dessa vez, aconteceu algo inédito, os familiares não puderam se despedir, é a primeira vez que temos que lidar com morte solitária, internação solitária, sem poder levar nosso famoso cigarro para que a alma encontre o seu lugar, os tios mais velhos e tias mais velhas não tiveram a chance de abraçar e chorar junto com os filhos e mãe dele. As notícias se espalharam em curto tempo, diferente de mortes no século 18, recebíamos notícias meses depois por recado (notícia via oralidade, na época não dominávamos a escrita e tecnologias de não indígenas), era sempre através de parentes que estavam de passagens, viajando ou chegando de viagens.
Passamos um tempo acreditando que não chegaria no território tradicional dos Medzeniakonai, afinal a doença não havia chegado no porto de São Gabriel da Cachoeira. Ações conjuntas entre governo municipal e entidades indígenas se converteu em uma força tarefa para espalhar notícias sobre a doença nas comunidades indígenas, via rádio municipal, radiofonia e cartilhas nas línguas indígenas do rio Negro.
Somos povo resistentes, mas até que ponto? A nossa saúde mental precisa de atenção, choramos, não tem como não chorar por um amigo e por um parente, choramos quando estamos longe, choramos quando viajamos, choramos quando estamos sozinhos. É saudável chorar, são etapas necessárias para a formação.
Komaderoa é nossa liderança de referência, que ocupa o cargo de diretor (Isaías Fonte) na nossa instituição indígena que chamamos de FOIRN, ele nos relata a proporção da chegada da doença nas comunidades, o medo, angústia de não poder fazer muita coisa pelo povo da comunidade. Passadas algumas semanas rapidamente se criou grupo de estratégia para ajudar o nosso povo e pensar sobre como levar a informação sobre a doença. O meio mais fácil que achamos foi o áudio, sim nosso povo Baniwa é hospitaleiro, tem muitos conhecidos no Brasil, professores, médicos, doutores e outros pesquisadores que já pisaram no nosso território Baniwa.
Entre choros por perdas de tios e tias, recebemos no grupo que foi criado a imagem que nos trouxe esperança, uma vovozinha Baniwa de 92 anos que se recuperou da doença e na porta do hospital disse: o remédio é não ficar triste, alegria afasta qualquer doença.
Entramos no modo alegria pois somos povo alegre e feliz, acreditamos na solidariedade e como as pessoas são boas, assim seguimos trabalhando, envolvendo cada pessoa que conhecemos para fazer chegar a doação para o nosso povo que necessita.
Mas no meio a isso, uma perda memorável, um pai de professores Baniwa do médio Içana, uns dos pais que incentivava e acreditava que a formação transforma a pessoa. A educação Baniwa e Koripako perde um dos seus líderes, o dia parecia não acabar, os filhos, a esposa e netos, foram deixados por ele, e nós primos e sobrinhos sentiremos saudades.
Rio Içana não será o mesmo depois desse caos de informação trocada, não será o mesmo, pois perdeu algumas de suas lideranças tão jovens para a doença, ficamos uma parte órfãos de tios e tias.
Mas o rio Içana e povo Medzeniakonai permanecerão firmes, dizendo ao mundo que sua medicina indígena, através de suas ervas e remédios silvestres, salvou grande parte do seu povo, seja os que estão dentro e fora do território.
Pregamos alegrias por onde passar, deixamos legados de sucesso onde chegamos e onde queremos chegar, somos assim um povo, que desde o contato fomos vistos como povo sujo, hoje nós respondemos que somos povos de conhecimentos que nunca outros saberão, isso é singular nos povos indígenas, o que é nossa ciência é nosso.
Perdemos 07 vidas, perdemos 07 bibliotecas vivas no rio Içana, mulher, mãe, homem, pai e vó, um pai escritor, um professor referência na comunidade deixa a Seduc e assim a Seduc não será a mesma, as ruas de São Gabriel, acostumadas a ver ele passar na sua moto, ficaram em silêncio nessa partida tão cedo.
Seguimos firmes, em nome dessas pessoas, dando e recebendo ensinamentos que os manterão presentes nas nossas vidas. Nossa homenagem as sete famílias que choraram por perdas por covid-19. O que fica na memória de cada membro da família são as risadas dadas, seja no caminho de roça, nos encontros, na hora do chibé, ou no famoso momento de quinhapira.
Finalizo, esta memória de saudades, dizendo que as Indígenas Mulheres Medzeniakonai ( Baniwa) são as mais belas e incríveis detentoras de uma ciência ímpar e que elas, mulheres pimenteiras que juntas com nossos artesãos de cestarias se recuperam dessa doença, emanam energias positivas e boas, que logo possamos nos encontrar e compartilhar nomes de remédios da nossa medicina indígena que foram usadas em seus tratamentos, que ao plantar novas roças pimenteiras e iniciar a produção de cestas, estejamos bem e com boas notícias de que muitos se salvaram. Aos nossos parceiros e colaboradores de lugares distantes, que ao retornarem a suas atividades normais, possam relembrar desse episódio com um suspiro de que muitas vidas foram salvas com sua atividade de solidariedade, uma parte dos Baniwa dentro de seus corações onde estiverem.
Um aperto de mão em cada um que for ler isso, e viva a conhecimentos ancestrais que está na nossa essência, como MEDZENIAKONAI!
Aos nossos parceiros e colaboradores, gratidão pelo esforço de ajudar nosso povo.
[1] Autodenominação do povo Baniwa na língua própria.
Colaboraram: Hipatairi (André Baniwa) Ray Baniwa e Komaderoa (Isaias Fontes)